20.3.20

Diário COVID-19 #4 - Estas medidas, o que significam na prática?




Várias pessoas me perguntam qual a minha opinião sobre o estado das coisas. E a minha resposta é: vocês não querem a minha opinião. Trust me. Pessoas sensíveis, não leiam a partir daqui.

Eu já desisti, estou perfeitamente consciente de que vou apanhar isto, é uma questão de quando e pedir aos santinhos para fazer parte dos 80% que desenvolvem doença ligeira ou assintomática. Quando a Merkel assume aos alemães que 70% a 80% da população vai ser infectada, ela está a ser honesta e isso aplica-se aos outros países. Está a dizer a verdade sobre probabilidades.

No dia em que Portugal declarou ter 112 casos identificados (ainda sem mortes), numa conversa breve entre mim, A e B, conhecíamos 15% das pessoas que ocupavam esta lista. Qual a probabilidade? Pouca, os infectados têm de ser muito mais. Não quero com isto dizer que a lista de números é mentira, quero dizer que a verdadeira dimensão tem de ser uma incógnita monstruosa.

Boneco do Público, aqui

Ou seja, os governantes deste país já assumiram que o mais certo é ficarmos quase todos doentes, mas a ideia é atrasar a quantidade de pessoas doentes ao mesmo tempo.

No desenho, o sombrero mexicano a cor-de-rosa pode servir de exemplo para o caso italiano: falta de material de protecção médica, não há camas, não há ventiladores, têm de escolher quem vive e quem morre, é um fim de mundo e andam a morrer 400/500 pessoas ao dia.

Por cá querem que sejamos o exemplo a azul. É quase certo que ficamos doentes, mas a intenção é que sejam menos pessoas em simultâneo (por comparação ao volume italiano) e que fiquemos abaixo da linha que define o limite da capacidade do SNS.

Enquanto não existir vacina não há como conter isto e os países que ainda não têm casos, vão ter. Nunca houve tanta população flutuante como agora (bom, como até há um mês) e isso teve consequências. Não acredito que algum país vá ficar para a história sem um caso para contar. E a acção da maioria dos governos é deixar acontecer porque, dinheiro e coiso...

Aqui, o que importa são os números, a economia, porque os países (e as pessoas) não podem acabar todas pobres. Pior do que as mortes provocadas por este vírus seria uma anarquia mundial onde imperasse o desemprego, a fome e o cada um por si.

Sim, num registo à Boris Jonhson, vão morrer pessoas. E aqui é pedir outra vez aos santinhos para que não seja nenhuma das pessoas que ocupa espaço no coração.

Em Itália , à data deste texto, já morreram cerca de 3.400 pessoas e em Espanha cerca de 1.000 pessoas. O Symphony of the Seas, um cruzeiro que fiz há tempos, tem capacidade para cerca de 7 mil pessoas. Sim, em Itália já morreram cerca de 3.400 pessoas, mas eles são 60 milhões. As mortes de Espanha e Itália somadas não chegam para preencher a ocupação do navio onde viajei um dia. Este é contas que os governos fazem, números. É trágico para quem sente, mas não é para quem analisa gráficos. São números, todos nós somos números.

Se morresse 1% do país, 100 mil pessoas, essa opção continua a ser economicamente mais favorável do que decretar isolamento obrigatório, fechar fronteiras e parar a máquina económica do país. De um ponto de vista mórbido-financeiro, sendo que a maior parte das mortes acontecem nas faixas etárias mais altas, isto significa menos reformas para pagar por parte da segurança social, médicos de família com maior disponibilidade, mais imobiliário livre para rodar no mercado e noutras faixas etárias, mais emprego disponível.

É um ponto de vista macabro, eu sei. Mas é isso que somos todos, números, e nesta análise incluo-me a mim e todas as pessoas de quem gosto, ninguém está livre.

Ao mesmo tempo, o que se viu neste país foi:

1) A DGS passar a palavra "no pasa nada", incluindo, em vídeo (que guardei), a afirmação que cito: "há uma fraquíssima possibilidade de o vírus se transmitir de uma pessoa para outra" e "não há grande probabilidade de um vírus destes chegar a Portugal". É chocante. Eu percebo que a informação podia ser escassa, mas na falta de informação, o silêncio é de ouro. Tudo o que a Graça Freitas, directora-geral da saúde, disser daqui em diante, olhem, já não consigo confiar.

2) O Presidente da República, o homem dos afectos, desiludiu ao vaporizar-se no ar quando o país mais precisava da sua presença. Mas sobre isso não me alongo, nenhuma opinião é tão boa como a do Pedro Coelho dos Santos neste excelente artigo do Observador.

3) Nunca a expressão de brincadeira "Costa Concórdia" se aplicou tão bem a António Costa. É incompreensível como esticou no tempo quanto pôde a tomada de decisões simples e isso vai dar cocó no fim do mês de Abril. Choca-me enquanto cidadã que tudo paire no ar com tanta decisão que podia ter sido tomada sem a mão de Marcelo.

Este governo deixou que fossem os cidadãos a tomar o pulso às medidas vendo o que se passava noutros países. Este governo deixou que todos fôssemos invadidos pelo medo e enfiar-nos na toca à espera de melhores dias. Fomos cada um de nós, sem orientações, que tomámos medidas. O Costa chegou atrasado à festa, já tínhamos jantado.

Em geral, as medidas anunciadas são uma fantochada, resumem-se a créditos, ou seja, a mais dívida para quem já sente a corda ao pescoço e a angústia de não saber quanto tempo isto dura. Agora é um jogo de casino, o empresário aposta no preto ou no vermelho? Recorre a empréstimos ou não? É que ao contrair mais dívida, ninguém diz qual o desemprego que vem a seguir ao COVID-19, se há consumo, logo, pode não existir facturação, logo, pode ter de fechar a empresa na mesma, logo, pode até surgir o risco de penhoras. Obrigadinha, não quero mais dívida. Mas na verdade nem teria direito a este pacote de créditos se quisesse, os meus negócios não fazem parte das áreas de negócios abrangidas.

E é tudo tão podre que relativamente aos negócios da área estética (que são milhares e milhares no país) a informação é omissa. Não diz que o meu cabeleireiro tem de fechar, mas também não me diz que posso abrir. E este facto não foi um acidente, é propositado para ganhar tempo. Enquanto isso, paga o empresário que tem as portas fechadas e facturação zero.

4) Esta coisa do estado de emergência decretado por 15 dias é outra fantochada, não é mais do que gestão de expectativas. A ideia é "não vou dizer que vamos ficar dois meses em casa para não alarmar ninguém, vamos pelos 15 dias renováveis e vamos aumentando". Depois, cada anúncio de renovação destes períodos de emergência (que vão surgir) será acompanhado de discursos: "juntos somos mais fortes", "estamos a conseguir", "somos um exemplo mundial", "os números são optimistas", "às armas!", e quando o microfone se desliga o António Costa olha para trás e pergunta: "quando é que isto acaba, alguém sabe?". Ninguém sabe. Estão claramente a apanhar papéis e isso vê-se pelo tempo que demoram a anunciar medidas. E se eu percebo que não possam adivinhar o futuro quanto ao vírus, há coisas que são adivinháveis.

Se calhar é este o papel do governo, manter-nos eternamente optimistas. Mas para mim o papel teria sido deitar os olhos à China e preparar um plano atempado no caso de o vírus fazer entrada em Portugal. E se nada acontecesse, ganhava-se pela experiência de trabalho. Caramba, até nas minhas empresas se falou com os funcionários sobre a possibilidade de isto acontecer.

5) Regra geral, o que eu sinto é que há mais marcas a "dar" do que sinto que o governo o faça: oferta de tráfego de internet, portes grátis nas encomendas online, fábricas a oferecer máscaras, a CGD que permite adiar no tempo o pagamento dos créditos à habitação, o supermercado que oferece pão a quem precisar, o vizinho que ajuda o próximo, etc.

Do governo vejo os impostos a chegar ou "então pagas mais tarde ou se preferires empresto-te e pagas-me de volta com um juro mínimo". Nenhum imposto foi reduzido nem por um mês, nem por um par de meses, nada para quem não sabe se no mês que vem tem emprego.

Resumindo, quanto a dinheiros, ou ficamos a dever ou pedimos emprestado e ficamos a dever com mais qualquer coisinha por tão nobre ajuda. Noutros países há muitas isenções para estes meses.

A mim, empresária é pedido que tenha um fundo de maneio para estes imprevistos e que arque com a despesa. Os cofres do estado, onde colocamos os nossos impostos, não têm de ter um fundo como nos é exigido. Mas se for um banco, o nosso dinheiro lá estará.

É preciso ser-se doido para ser empresário em Portugal.

Em suma, nesta altura, eu só acredito no que os médicos dizem. Acredito na palavra de quem anda no terreno, de quem não está preocupado com a imagem que vai passar e está mais preocupado com o que enfrenta ou vai enfrentar. É que estas pessoas não têm um cargo político ao qual desejam dar continuidade, querem apenas prestar o melhor trabalho possível, salvar o maior número de vidas e proteger-se quanto é possível.

O governo vai entreter-nos enquanto puder, deixar a dúvida no ar e enquanto isso o tempo passa, as empresas vão ao buraco e dá-se início ao desemprego.

Eu não tenho a mania nem sei se fazia melhor, mas sei o que sinto na pele enquanto cidadã e empresária. Se há coisas que podem estar a ser bem feitas (nem sei), há muitas que não fazem sentido, mil que estão atrasadas, outras que estão omissas, etc. Eu queria era ver medidas que me impressionassem e que me fizessem sentir um factor "uau". Mas é tudo mais do mesmo, tarde e a más horas.

Anyway - para os críticos dos meus textos que eu tenho a mania que tenho razão - riquezas, não há mais nada no mundo que eu deseje nesta fase senão estar completamente enganada. Ter razão é na verdade um pain in the ass que não me traz nada de bom, OK?

***

ADENDA: no dia seguinte a este texto lá saíram as medidas que proíbem a abertura de espaço de estética como os cabeleireiros. Tanto tempo! Já eu tinha fechado antes.





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