4.4.20

Diário COVID-19 #5 - Sim, estive em Madrid e em Milão e isso não faz de mim irresponsável.


Ao longo destas últimas três semanas foram vários os contactos que recebi, em jeito de acusação ou de insulto, "a hipócrita que condenou a lenta acção do governo, mas que foi a Madrid e a Milão sem pensar nos outros". Tendo em conta as pessoas que me contactaram, deve haver muitas mais que pensaram o mesmo, mas tiveram a gentileza de não me acusar de ser a razão de muitos males.

Em abono da verdade, eu explico.


Fui a Madrid e voltei no mesmo dia, o dia 8 de Fevereiro. Não fui passear, fui sozinha e em trabalho para explorar uma área de negócio que ando a estudar há mais de um ano.

Neste gráfico não encontram o dia 8 de Fevereiro, mas encontram a data do primeiro caso identificado em Espanha. Identificado, notem bem. Olhando para trás é evidente que já existiriam casos de COVID-19 em todo o lado (Portugal incluído), mas essa não era a percepção real que tínhamos na altura. Ainda estávamos a apalpar terreno, a perceber se o problema se ia abater pela Europa como na China e - isto conta muito - nenhuma criatura europeia viva alguma vez passou por uma experiência semelhante, o que diz muito sobre como agimos. Todos somos capazes de reconhecer que o que estamos a viver é digno de filme.

Sobretudo, o meu governo, a Europa, a OMS, diziam-me que era seguro viajar, que bastaria ter alguns cuidados, que tive.


Na semana seguinte, voltei a viajar, desta vez para Milão. Outra vez, fui sozinha, não fui passear e fui em trabalho. Fui à feira de calçado MICAM no dia 16 de Fevereiro para regressar no dia seguinte. Olhando o gráfico, podem avaliar a quantidade de casos que existiam em Itália à data da minha viagem, sendo que esse casos identificados se encontravam a norte, na cidade de Bergamo. 

Duas semanas depois abateu-se um inferno a norte de Itália e com o tempo as feiras viriam a ser encerradas e o isolamento decretado.

Claro, olhando para trás, é evidente que tinha de haver COVID-19 em todo o lado (outra vez, Portugal incluído), mas o panorama de casos identificados à altura era tranquilo, estavam numa fase de avaliação sem imaginar o que viria a desabar sobre o país.

Novamente, fui porque o meu governo, a Europa, a OMS, me diziam que era seguro viajar e que bastaria ter alguns cuidados. Que tive.

Se tive uma sorte dos diabos em não ser contagiada? Se calhar.
Ou tive os cuidados necessários e foi o suficiente. Nunca saberei.
Ou fui contagiada e não dei por isso. Também não sei.

No entanto, nunca viajei com sentimento de irresponsabilidade e muito menos com medo. Nunca vi receio nas pessoas que me rodeiam. Nunca me senti insegura, assumi que as instruções dadas seriam suficientes para me proteger. A informação de que dispomos hoje estava longe de ser o que tínhamos à data das minhas viagens.

Hoje e a altura das minhas viagens, como podem até ver nos gráficos, não eram comparáveis.

É preciso lembrar que antes de parecer que não pensei "nos outros" eu tenho família. Tenho uma filha, tenho um marido, tenho mãe e sogros no grupo de risco. Tenho pessoas que trabalham para mim, algumas também do grupo de risco. Os outros podem perfeitamente ser as pessoas de quem eu gosto.

Continuei a trabalhar com normalidade e não fiz quarentena. O que aconteceu foi que mais de uma semana após o meu regresso, disparou o aumento de casos identificados e pediram-me para não ir ao escritório, a minha irmã pediu para não fazer visitas e eu respeitei. Mas já tinham passado uns 10 dias.

Não levei a situação com descrédito, levei com a preocupação necessária que as diversas entidades me diziam que tinha de ter. 

Se depois disto acho que os governos e as entidades como a OMS são de desconfiar? Não sei. Mais uma vez, não há uma pessoa que tenha passado por algo assim em vida ao mesmo tempo que a China parece ter omitido informação relevante que podia ter alterado o curso de todos os outros países. Olhando para trás, até onde se podia exigir mais rigor?

O que eu tenho a certeza, absoluta (apesar de se dizer que Portugal deu uma resposta rápida), é que se tivéssemos entrado em confinamento ao paciente 0 identificado em Portugal, com fronteiras fechadas, tinha-se poupado a economia, empregos, vidas e estaríamos confinados em casa muito menos tempo. Depois de os coitados dos italianos serem o mártir europeu para as consequências do COVID-19, não havia motivo nenhum para os governantes de Portugal ou Espanha acharem que ia ser diferente.




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