20.1.17

Invejosas e sabichonas


Não conheço a Ana Rita Clara, acho que nunca a vi, sei que tem um programa de TV que nunca devo ter visto mais do que umas passagens (sem sentido depreciativo, apenas porque não vejo TV) e não a seguia nas redes sociais. Mas ontem esta apresentadora deu que falar nas revistas, li as notícias e concluí que tudo se resumia a ataques de "invejite" e "sabichite", numa mistura de QI reduzido, acesso à internet de quem não devia, resultando naquilo que chamamos de trolls da internet e que podemos ler aqui.

Por ter um estilo de vida que é lá com ela, por ter um presumível vencimento e condições de vida que é lá com ela, por partilhar alguns aspectos da vida dela enquanto mãe e sabendo-se que não temos todos vidas iguais, logo apareceram aves raras prontas a disparar (vale a pena ler, é tudo gente de QI elevado):

A "sabe-tudo do que se passa lá em casa e é indecente poder ter empregadas quando eu não posso ter": «Como pode estar a falar a sério???? É quase uma ofensa a todas as mulheres! O seu ritmo de vida não é a realidade. Quando temos amas, empregadas de casa, babysitters é muito mais simples não? Um pouco de decência». Eu achava que a falta de decência nada tinha a ver com a possibilidade de poder ter empregadas ou babyssiters...

A "se não dás de mamar também não podes recomendar a amamentação" ou "eu sei que as tuas mamas já não têm leite": «Sim é tudo muito simples com ela. Até amamentar! No início fez um post sobre amamentação (fotos a ilustrar) mas não me parece que o faça ou que o tenha feito. Nada contra que não o faça, agora não publicite algo que é mentira. Mais é menos, minha querida!». Pena que esta senhora não aplique a última frase à trampa que escreve. O raciocínio para os outros é "mais é menos", para ela "mais é sempre mais".

A "eu sei que as tuas mamas não têm leite" parte II: «Também não tenho nada contra quem não o faz, mas tenho contra quem finge que o faz. Era escusado, mas é verdade que fica sempre bem a postura politicamente correcta. Foi pena o passo em falso do copo de vinho no jantar a dois, mas rapidamente se edita uma legenda e se escreve que foi apenas só para o brinde. Simples". Simples foi o mojito que eu bebi aos 3 meses de gravidez ou o vinho que bebi em alguns jantares, um copo de vez em quando, talvez três em toda a gravidez. E felizmente longe destas mulheres fundamentalistas, não fossem partir-me o copo nos dentes.

A "eu sei que as tuas mamas não têm leite" parte III (muito se opina sobre a mama alheia, impressionante!): «Nada tenho contra quem não amamenta mas senti-me enganada quando li aqueles posts sobre amamentação, com as normas da OMS e a importância da livre demanda e de repente a amamentação deixou de ser fixe. Só tem a ganhar se fizer um post sobre as dificuldades da amamentação e sobre a atitude positiva com que superou essa fase. Seja verdadeira. Ser mãe não é fácil, seja com organização ou não». Enganada sinto-me eu com quem me deve dinheiro há quase um ano e não me paga! Mas há quem se sinta enganada quando uma desconhecida deixa de dar de mamar (?) tendo inicialmente promovido a amamentação. Há que dar importância ao que tem importância.

A "se a tua vida não é como a minha não é vida a sério, é uma fantochada": «insiste em publicitar uma imagem idílica da maternidade e completamente desfasada da realidade da maioria das portuguesas». A imagem que a Ana Rita Clara passa é idílica, não é a leitura que a comentadora faz que pode estar errada. Os trolls da internet são sempre assim, nunca se colocam em causa, nunca erram, têm sempre razão.

A "eu sei como é que devias ser, eu é que percebo disto e tomara que a vida te corra mal" (contorcendo-se da mais profunda inveja): «Acho que deve pensar em criar outra imagem. Esta começa a cair no ridículo (no futuro vai deixar de vender) a maior parte das portuguesas ganha o ordenado mínimo e não tem hipótese de ter um lifestyle como seu. Não vivemos no Mundo dos desenhos animados". Quem tem uma melhor qualidade de vida não passa de um desenho animado. Quem tem uma melhor qualidade de vida é injusto. Quem trabalhou por uma melhor qualidade de vida não devia ter tido sorte. Quem tem uma vida melhor não é merecido.

A "ninguém sofre como eu e ter ajuda não é ser mãe de verdade": «Tretas... Podes vir aplicar essa teoria na minha casa a ver se és capaz, mas sem deixar os filhos em qualquer lado para ir de férias! Isso é batota. Tenho 3 o mais novo tem 6 meses. Teorias parvas. Nem tens ideia da realidade de um dia a dia de uma mulher activa com filhos. Trata-te». Educada, claro, essa é a primeira impressão. A segunda impressão é a de uma pessoa que escolhe bem o que quer: sabe como é, o que custa e continua a somar filhos. Ela é que sabe do verdadeiro sofrimento, o resto são amadoras que precisam de se tratar.

A "ninguém sofre como eu e ter ajuda não é ser mãe de verdade" parte II ou "eu sei quanto ganhas": «no mínimo não goze com as outras mulheres... Sim, é tudo tão fantástico e lindo com a sua conta bancária». Intrigam-me estas pessoas que sabem coisas que eu não tenho como saber! E claro, na eventualidade de ter um bom vencimento, é um insulto. Ganhar bem é sempre um insulto para os invejosos.

A "não estás a mimar o teu filho como deve ser, eu é que sei como se faz" e "provavelmente desleixei-me": «Que desilusão têm sido estes posts desde que foi mãe! Ser mãe feliz não é ter necessidade de ir para o ginásio deixando um bebé de duas semanas só com o objectivo de tirar a foto que mostra ao mundo o corpo perfeito de uma mãe de um bebé com duas semanas! A sua vida é um conto de fadas no Instagram, parabéns! Mas há vínculos e momentos que nunca mais terá, porque andava na busca da foto feliz! Não tenho inveja nenhuma porque melhor que parecer feliz é viver momentos felizes sem a preocupação constante de o ter de demonstrar aos outros!». Outro registo típico dos trolls é seguir uma página que os desilude/não presta. Nem conseguem tirar os olhinhos de cima. E claro, padecem da sabichice máxima de saber sobre a felicidade alheia. Se não têm como ir ao ginásio não aceitam que possa ser um escape saudável ao mundo dos bebés (para quem pode), não aceitam que seja algo que a faça sentir bem, até por ser algo que fez a vida inteira. Não, não e não! Tem de ser por ser vaidosa, tem de ser sinónimo de rejeitar a criança, tudo por um rabo melhor.


Vivo muito mal com a estupidez/maldade humana. Há uma máxima de vida muito interessante que uso para mim: "se não queres uma vida complicada, não compliques". E ainda outra: "concentra-te nas soluções e não nos problemas". E isto serve para quem tem filhos. Se é para me lamentar, para quê ter filhos? Se é para sofrer com menos tempo, menos dinheiro e piorar a qualidade de vida, para quê ter mais filhos?

Ontem com as obras em casa o homem suspirava a olhar para o chão patinhado. Aquilo estava a irritar-me e perguntei: "queres ter tudo e não te chatear com nada? Não existe!". E o mesmo acontece para quem quer ter filhos. Vão trazer despesas, chatices, privações, coisas boas e más. Mas se para determinadas pessoas é para ser um sofrimento contínuo, para serem comidas pela inveja e pelos queixumes ao olhar a vida dos outros, para quê ter filhos e, pior, para quê somá-los? Há páginas de mães com vários filhos que deixei de seguir porque são um rosário de queixumes em vez de vidas com coisas boas e más, mas com espírito positivo. Para nenhuma pessoa a vida corre sempre bem, toda a gente tem dias bons e maus, com e sem filhos. Mas depois tudo depende de como queremos encarar os dias.

Há cinco anos tinha pior qualidade de vida do que tenho hoje. Pior não significa má, mas hoje sinto que é melhor. Se queria filhos na altura? Para quê, para me piorar a vida? Tudo o que fiz até hoje (sair mais tarde de casa da minha mãe, abandonar a carreira, investir as poupanças na criação de marcas) não sei se teria feito isto tudo se tivesse filhos. Provavelmente não. É que da forma que o fiz, se corresse mal estava por minha conta, com filhos a responsabilidade é outra, então escolhi não ter.

Quando escolhi engravidar, fi-lo com consciência e até com uma condição da qual não abdicava: não engravidaria se não fosse para ter uma empregada o dia inteiro, o que os nossos vencimentos permitem. Se os vencimentos não permitissem teria filhos? Se calhar não, não sei dizer. A minha mãe até diz num jeito de a brincar digo a verdade: "coitadinha da Carminho". Eu não sou pessoa para ser mãe a tempo inteiro, para ser dona de casa, para viver em função da família. Eu quero o meu tempo para fazer o que me dá na real gana, seja trabalhar, ir passear, viajar, ao ginásio, o que me apetecer. E sem vergonha nenhuma, só tenho uma vida, tratarei de a aproveitar e fazer por mim. É óbvio que não será tudo como antes, mas também não cultivo para que seja radicalmente diferente e mal me permita respirar. Os primeiros tempos serão de adaptação, o resto vai-se arrumando.

Não percebo este tipo de mulheres que dão tiros nos pés. Não têm o que querem, não têm as condições de vida que querem e dizem-se "insultadas" por vidas melhores (é extraordinário). O que aconteceu à capacidade de decisão racional? O que aconteceu ao "eu sei que não está tudo como eu quero, mas mesmo assim quis ter filhos"? Isso sim é razoável, fazer opções em consciência em vez de reclamar com os outros a vida que escolheram ter.

Não percebo as mulheres que acusam outra de ser uma mentira por ter deixado de dar de mamar depois de promover a amamentação (nem sei se isto é verdade). Não podemos recomendar uma coisa boa mesmo que não a façamos? Do tipo lavar os dentes mesmo que não os lave? Na verdade, em termos de mamas a minha ideia não podia ser mais prática: sei que é bom, posso tentar, se não gostar ponho à beira do prato. É que nem existirão hesitações, será o que eu preferir e não o que é melhor para o bebé. Eu não mamei e estou óptima: tão saudável que não escrevo este tipo de ataques em páginas alheias.

O que dirão as mulheres sírias em plena guerra que viram os filhos morrer afogados no Mediterrâneo? E as que viram os filhos perder peso dia após dia sem encontrar o que lhes dar de comer? O que diriam das vidas "sofridas" destas mulheres que comentam o Instagram da Ana Rita Clara, heim? Ou as que têm 10 filhos em África em cabanas de palha, sem o mínimo de condições de higiene, com altos índices de mortalidade e que andam 20Km a pé todos os dias para dar água potável aos filhos enquanto as comentadoras da Ana Rita Clara abrem a torneira? E o que dirão as mulheres que até vivem num mundo ocidentalizado mas tiveram o azar de ser picadas por mosquitos com zika? E esses milhares de brasileiras que têm pela frente uma vida com filhos com microcefalia e foram abandonadas pelos maridos? 

É preciso ter-se mau fundo. Em todo o mundo há quem esteja melhor e muito pior, mas não aguentam uma portuguesa à qual se estima uma melhor qualidade de vida do que a delas. Posso compreender a frustração, o cansaço, os imprevistos e até o arrependimento de ter filhos. Mas não compreendo o fazer os outros sacos de pancada das frustrações pessoais numa rede social. Não consigo compreender esta burrice.


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© A Maçã de Eva

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