29.5.19

Séries: O desaparecimento de Madeleine McCann



Trailer aqui.

O nome dispensa apresentações, poucas serão as pessoas no mundo que não saibam do desaparecimento da Madeleine McCann, quanto mais se forem portugueses. Acompanhei o caso desde o dia zero, na altura era estudante de comunicação e todo aquele aparato mediático era (e continua a ser) digno de estudo.

Esta série que me parece isenta - começa de uma forma e acaba de outra - é tão boa que não há palavras. Está aqui um trabalho jornalístico de juntar peças, de falar com especialistas de todo o mundo, com envolvidos nas investigações de todas as nacionalidades, o resultado é digno de Óscar, se houvesse para trabalhos de investigação.

Talvez importe dizer que eu tenho a convicção de que aqueles pais são pais em sofrimento e que nada têm a ver com o sumiço da criança. Não só tenho essa convicção como é um assunto tão sério, tão grave, uma realidade que me deixa tão melindrada, que eu não tenho paciência para ler/ouvir as teorias da conspiração. E ainda chega a meter-me nojo as piadas que se fazem em torno do assunto.

Sim, há limites para o humor. Enquanto os humoristas acham que tudo é válido, a linha só deve ser traçada se for o filho deles a desaparecer. A sério, a estes parvos que se põem com graçolas, deviam perder os filhos por um dia para abrir a pestana e ver se tinha graça fazer piadas sobre o assunto. Falta-lhes angústia, falta-lhes sofrimento na pele para perceber o que tem piada brincar ou não.

Nem me quero alongar sobre as piadas de parvos, a desgraça alheia não me dá vontade de rir, dá-me antes medo que me possa acontecer a mim, ainda que seja improvável e que apenas uma muito pequena parte da população viva situações destas.

Não existem crimes perfeitos, mas existem crimes escondidos por muito tempo. Espero que este seja um desses casos. Não acredito numa mão cheia de adultos que estão de férias num país que não conhecem, com mais não sei quantos empregados de hotel, mais pessoas na rua, menos carro que não têm, poupem-me... um corpo não é fácil de esconder num par de horas num país desconhecido.

Além disso, há a luta daqueles pais que se empenham numa campanha sem fim e passam os dias a tentar novos focos de atenção, retomar o caso, quando podiam perfeitamente ter deixado o caso entregue às autoridades e sossegar na terra deles. São activos, não descansam e isso não é um álibi.

As mentiras que envolveram o circo mediático foram vergonhosas. Mas a forma como se comportou a nossa polícia foi abaixo dos mínimos. A série dá um retrato da polícia portuguesa abaixo de cão, provincianos, falta de conhecimentos, o Gonçalo Amaral aparece como um tipo armado em xerife tão cheio dele próprio que não coube espaço a linhas de investigação que não fossem as que ele pessoalmente acreditava. Aquele argumento de "os lençóis estavam esticados, parecia que ninguém se tinha deitado na cama", ó filho! Devias ver como ficam os meus lençóis de baixo que têm elástico.

Na investigação mediática não há paciência para a discussão se a mãe tem cara de quem sofre ou não. Sabemos lá que cara de sofrimento faríamos se nos desaparecesse um filho e nos dissessem que tínhamos de representar de determinada maneira em frente aos meios de comunicação para proteger a vida da criança!

A série começa o desaparecimento da miúda, a GNR chega uns 40 minutos depois do alerta (certamente com a criança já a atravessar a fronteira e a chegar a Espanha). Os episódios passam com os pais da Maddie a parecer que "cheiram mal", com uma polícia portuguesa absolutamente vergonhosa até começar a investigação a sério, já bem mais tarde do que seria suposto. Um ano depois?

Os últimos três episódios sorvi-os. O PAM deixou de ver, aquilo estava a causar-lhe uma angústia desgraçada, preferiu deixar de ver, não estava a conseguir lidar com o abrir de portas de uma realidade que jamais pensaríamos existir em Portugal, um país tão pacato. Com a desistência dele fiquei uma noite a acabar de ver a série até às quatro da matina. Deitei-me sem conseguir dormir, acordei a pensar na série, estive dias e dias a pensar no assunto. 

O documentário é assim de bom, acho que era capaz de ver outra vez. Infelizmente é uma história real. Uma história real em que todos os especialistas mundiais apostam na inocência dos McCann (com base nas provas) e depois há o Gonçalo Amaral e os comentadores de redes sociais, o Zé Povinho, que ocupam espaço na internet quais mestres da investigação sem escolaridade obrigatória.


*** MAIS OU MENOS SPOILER ***

O detective espanhol contratado é sublime, inacreditável de ouvir. O que ele conta é de causar arrepios. Não queria estar no lugar dele.

A cena dos cães é completamente parva e inconclusiva. Se o boneco tem o cheirinho a cadáver, pode parecer perfeitamente normal quando os pais são médicos e trabalham em ambiente hospitalar.

Cheirar qualquer coisa num carro que foi alugado depois do desaparecimento da miúda é andar a gozar com as pessoas. Fizeram o quê? Esconderam o corpo debaixo da cama e foram desaparecer com ele mais tarde num carro alugado quase um mês depois?

O milionário que decidiu ajudar os McCann apenas porque sim, é extraordinário. Ajudar é gratificante, (quase) todos sabemos, mas pôr as mãos na massa e poder ajudar na prática deve ser um sentimento muito bom.

As agências e pessoas que se aproveitaram do sofrimento destes pais receberão a lei do retorno. É preciso acreditar nisso.

No dia a seguir ao rapto, aquela cena da mulher em Barcelona é sinistra e altamente suspeita.

Aquele especialista internacional que começa por achar que os pais estão envolvidos para mudar completamente de opinião (com base na sua experiência de investigação) era onde o Gonçalo Amaral devia colocar os olhos.

Fica claro que existe no Algarve uma operação criminosa de tráfico de pessoas.

O pico da série está no 7º episódio, quando uma estrangeira aluga uma casa no Algarve, um dia recebe um homem à porta num falso peditório para um orfanato que não existe (mas ela ainda não sabe). A mulher sente-se desconfortável naquele contacto, sente que ele só olha para a filha atrás dela, sentada no meio da sala a brincar. Despacha o homem e não pensa mais no assunto. No dia seguinte a mulher está sozinha na casa alugada com a filha, desce as escadas com um alguidar de roupa para lavar, faz a curva para a sala e lá está o mesmo homem sinistro de pé junto à filha, no meio da sala, entrado por uma janela. A simulação e descrição deste momento vivido por uma estrangeira de férias no Algarve é uma coisa absolutamente arrepiante. Juro, literalmente me arrepiei toda e levantei os braços à cabeça. É o pico do documentário e a prova de que algo muito estranho se passa no Algarve.


*******

Existem fundos para prevenir e interromper o terrorismo, para travar as drogas, há tanto conhecimento em volta destes dois problemas, mas o desaparecimento de crianças parece ser tão omisso no que toca a esforços de autoridades que não se compreende. E quando alguém nos abre as portas a este mundo, a dimensão é assustadora: todos os anos, POR ANO, desaparecem 25 mil crianças na Austrália, 40 mil crianças no Brasil, 33 mil em Espanha, 424 mil nos EUA e a lista de países continua com números aos milhares. Alguém consegue reflectir e perceber que estes números não sejam uma prioridade tão importante quanto a luta contra o terrorismo?

Em Portugal, em 2006, desapareceram 31 menores. Não acham isto um número muito grande para Portugal? Alguma vez deram conta desta dimensão? Destas, 24 foram entretanto encontradas, 2 foram encontradas mortas, as restantes continuam desaparecidas.

No fim do documentário ficamos a saber que Portugal é um país sem desaparecimentos significativos em número anual quando comparado com outros países, mas acontecem e é palco de passagem para tráfico de mulheres e de menores. Fiquei com a plena consciência disto e sou da opinião que qualquer mãe/pai devia ver esta série, com especial atenção nos últimos episódios, onde focam outras casos, contam como se processam raptos de menores, falam de casos em Portugal, focam as agências que ajudam nestas situações, é tudo de levar as mãos à cabeça. E de não reconhecer o nosso país. 

Por exemplo, não sabia, não tenho mesmo memória deste caso, mas em leituras posteriores à série descobri que em 1996 desapareceu de uma praia em Aljezur, de uma forma inexplicável como que engolido pela terra, um menino alemão, René Hasée, de seis anos. Não me lembro mesmo de mediatização do caso e não se encontra muita coisa online. No entanto, todos os anos, há 17 anos, ali rumam os pais em busca de um filho desaparecido que terá nesta altura 23 anos.

Outro exemplo, desta vez a norte, esta semana dei com esta notícia de um desaparecimento em 1994. Alguém se lembra deste caso? A ser verdade esta notícia, como é que é possível que o caso tenha sido conduzido assim cheio de pontas soltas. E como? Como? Como é que se destroem processos de desaparecidos que nunca apareceram porque já prescreveu? Ao menos entregassem a papelada à família!

Percebo quem seja como o PAM e prefira não saber, mas entre a escuridão da ignorância ou a luz da informação, eu preferi saber. Depois de ver a série, depois de tudo o que fui lendo pela sede de saber mais que o documentário me provocou, nunca mais saí à rua com a Carminho da mesma maneira. Acho mesmo foi para mim um ponto de viragem na forma como vejo a minha filha em sítios públicos e olho para estranhos.

Se eu acredito que a Maddie está viva? Não sei. Se por um lado a lógica me diz que todo o circo que se montou tinha melhor solução com a morte dela, por outro lado existem outros casos em que a probabilidade da morte da/o desaparecida/o era alta, mas 20 ou 30 anos depois aparecem saídos de uma cave escura onde viveram a vida inteira. Nunca se sabe. Mas se pudesse pedir, espero que um dia apareça. Até porque era preciso esfregar isso na cara do Gonçalo Amaral.

A não perder.


"As a parent of an abducted child, I can tell you that it is the most painful and agonising experience you could ever imagine. My thoughts of the fear, confusion and loss of love and security that my precious daughter has had to endure are unbearable - crippling. And yet I am not the victim, Madeleine is", Kate McCann.





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© A Maçã de Eva

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