15.11.16

"Quero criar uma marca de sapatos"



"Quero criar uma marca de sapatos", esta é uma frase com que me contactam com enorme frequência. Perdi mesmo a conta às mensagens recebidas com este teor. Mas há algo em comum nestas mensagens recebidas: falta de noção. Não sei como dizer isto de outra forma, não o escrevo com o lado agressivo que a expressão pode ter, procurei um termo alternativo, mas nenhum outro representa isso mesmo.

Eu não levo a mal estas mensagens (de todo!), mas nas entrelinhas é possível fazer leituras de deslumbramentos e perfis completamente desadequados a criar um negócio próprio. A maior parte das vezes mostro as mensagens que recebo a amigos com maior experiência profissional do que eu, peço-lhes a opinião para poder dar acabamentos à minha opinião pessoal e redigir uma resposta, e nestas consultas nunca me aconteceu receber uma opinião contrária ao que pensava.

Criei a ROS LISBON, marca de sapatos, em 2014. A minha licenciatura é de Comunicação, fiz carreira como assessora de imprensa na área da saúde, passei por vários organismos do Ministério da Saúde, por outras entidades privadas, fui feliz (muito feliz) no que fazia e cheguei a uma altura, ao fim de quase uma década, em que já não me sentia profissionalmente realizada. Não sei explicar, passei a sentir-me maçada e sufocada com o que fazia. Hoje olho para trás e acho que estava num processo de mudança pessoal.

Os sapatos sempre foram uma paixão, tinha-os aos montes, apaixonava-me a ideia de fazer os meus próprios sapatos. Depois da ideia, não se criou da noite para o dia, mas a marca foi-se criando. Foi-se preparando o terreno, foram-se ganhando conhecimentos, estudando, até que saiu a primeira colecção. A ideia era: se correr mal, choro o meu dinheiro, a vergonha pessoal e vou à procura de emprego. Correu bem, com o tempo seguiram-se outras marcas e tornei-me algo que nunca me imaginei: empresária.

Venho de uma família empreendedora em que muitos têm negócios próprios em vez de empregos, o que vem já do tempo dos meus bisavós. Não quero com isto dizer que criei as minhas marcas por uma questão de tradição, mas aprendi muito sobre negócios enquanto cresci (o mau e o bom, quantos calotes vi a família apanhar!), trabalhei em alguns destes negócios enquanto adolescente para ganhar uns trocos e todo este cenário de empreendedorismo, de poupança, de investimentos e dinheiro aplicado às vezes com sofrimento, nunca me foi uma coisa estranha, fazia parte do meu ambiente familiar.

Ao longo destes anos não sei quantas pessoas me contactaram dizendo que também queriam criar uma marca de sapatos, mas as perguntas que me colocaram raramente tinham a ver com a minha opinião sobre a área do calçado ou sobre o processo pessoal de mudança profissional. As perguntas foram e são maioritariamente: "como é que eu faço?", "quais as fábricas em que fabricas?", "como é que fizeste tudo?", "também quero", e eu fico ali num dilema "como é que eu respondo a este email de forma honesta, ajudando com a verdade, mas sem parecer uma megera?".

De uma forma directa, sem querer ser indelicada, mas consciente de que para ajudar devo ser totalmente honesta, as questões que me colocam na maioria das vezes põem a minha marca (ou outra marca a que se dirijam) em causa. A resposta às perguntas que me fazem é o que se chama de "papinha toda feita".

Isto de querer facilidades, tudo pronto e apresentado num ideal "passa para cá tudo o que tens", faz saltar uma série de etapas de todo um processo de aprendizagem e descoberta para a criação de um negócio, fundamental para criar uma base sólida de conhecimentos, e por sua vez fundamental para a tomada de decisões. Em suma, parece bom querer e ter tudo facilitado, entregue de mão beijada, mas depois dá cocó.

Isto não significa que sou doente da minha informação e incapaz de dar dicas (como já fizeram comigo). Ainda esta semana uma marca de sapatos me perguntou onde podia fazer aplicações e eu respondi o que sabia. Gosto da pessoa em questão, não vende bem o meu tipo de modelos, ajudei como pude. Também há dias uma marca de sapatos de criança de uma pessoa conhecida me perguntou onde encontrar peles e eu sugeri os meus fornecedores. À minha concorrência directa que faço sempre questão de visitar nos mercados, fazer votos de boas vendas e ter boa relação (quando o outro lado colabora), eu disse onde fazer as melhores caixas sem que me perguntassem. Em suma, não sou obcecada, muito menos egoísta, mas compreendam que tenho de defender o meu negócio.

Em última análise, toda a informação que me solicitam "vale dinheiro". Para uma pessoa chegar aos conhecimentos que adquire ao longo de anos de negócio, foi investido muito dinheiro: em cursos, em livros, em viagens, em feiras, em materiais, em protótipos, em tentativas, em telefone, em gasolina, é um sem número de despesas e de processos de tentativa-erro que, tudo somado, vale uma pequena fortuna.

Não querendo de todo parecer má, de forma directa, preto no branco, a minha opinião pessoal é de que uma pessoa com características pessoais que levam a contactar uma marca com perguntas que representam os segredos de negócio, sem ter noção do que estão a fazer, são características pessoais que não correspondem a um perfil de liderança e de pulso necessário para ter um negócio próprio, seja de sapatos ou outra coisa.

Quando mostro algumas destas mensagens em busca de outras opiniões (opiniões sérias, para não ser só eu), às vezes dizem-me para responder "não quer antes ficar com a minha marca de graça?". Claro que isto é conversa entre amigos e profissionais, não é com este teor que respondo a quem me contacta, mas é exemplificativo do tipo de perguntas que me fazem.

Ter um negócio próprio não é espectacular quanto parece. Esqueçam isso! Eu percebo que existe um deslumbramento à volta disso, mas porque existe uma falta de conhecimentos da realidade.

Pude criar as minhas marcas porque tenho outras fontes de rendimento e tive coragem de o fazer porque tinha uma rampa de lançamento com milhares de visualizações, o blogue. Tenho perfeita e absoluta consciência de que não teria sido possível sem o arranque do blogue.



Deixei umas dicas neste post que escrevi há tempos. Nele eu digo que é fundamental falar com profissionais da área antes de arrancar com um negócio, mas falar não é perguntar às marcas os seus segredos de negócio, os seus fornecedores e muito menos um passo-a-passo de como é que se faz tudo para chegar ao produto final. Esse é o tipo de perguntas que embora eu não leve a mal, é revelador de características pessoais sem perfil para liderar um negócio próprio. São pessoas que me fazem pensar: "se fores em frente vai dar asneira".

No meu caso existia um conjunto de factores e conhecimentos (pessoas) que me permitiram movimentar e aprender rapidamente. Eu tive muita sorte, a vida proporcionou-me as condições para arrancar com uma marca de sapatos e outros negócios que tenho. Para quem parte do zero o cenário é muito mais complicado e demorado, leva anos de estudo e, às vezes, de tentativas.

Dou o exemplo das CLOUDS Ballerinas (sabrinas): levei dois anos de tentativa-erro para encontrar o fabricante que fazia o que eu procurava, fiz uma colecção e poucos meses depois a fábrica informou-me que ia fechar. Voltei à casa de partida depois de dois anos à procura, ficando sem nova colecção e preciso agora de recomeçar o processo para as sabrinas. Isto para mim é um retrocesso brutal.

Para arrancar com a ROS LISBON, comecei por aprender junto de pessoas que já conhecia (e para as quais eu não representava concorrência) e, mais tarde, com a minha experiência pessoal. Estamos sempre a somar conhecimentos, estou sempre a aprender, a descobrir coisas novas e a sofrer retrocessos. Para escolher as unidades fabris, parti de uma única recomendação e também de uma base de dados de fábricas sem problemas financeiros, o que se pede a empresas especializadas na área de finança e entregam uma lista de fábricas com as características que indicamos. Uma base de dados destas custa uns milhares de euros.

Uma das perguntas (normais) que me fazem é se é possível viver do negócio. Logo no início? Não, não é (mas também depende do negócio em questão e do estilo de vida de cada um). Arrisquei em criar a ROS LISBON com resultados a longo prazo, esqueçam resultados de prazo imediato e esqueçam retorno antes de dois anos de vendas. Qualquer gestor de vendas dirá que dois anos é aquele limiar em que um negócio continua ou vai abaixo.

Só agora recuperei todo o investimento que coloquei na marca de sapatos, ficando com um bom fundo para continuar a reinvestir nas novas colecções. Decidi que a partir de 2017 vou começar a tirar mensalmente uma parte dos lucros para mim, ou seja, dois anos e meio após o início da marca. No entanto, isto são também decisões de gestão financeira pessoais, podem variar de pessoa para pessoa e eu retirei valores de uns negócios para começar outros negócios, portanto os cenários não são todos iguais.

Estas coisas levam tempo, não sou deslumbrada com o que já ganhei, sou muito cautelosa e rapidamente aprendi que não devia ter apenas um negócio, por isso estou a somar vários investimentos ao mesmo tempo. Se um correr mal, tenho outros, chama-se diversificação de risco. Fazer isto com capital próprio (não aguento a ideia de ficar a dever), não é possível para todas a gente, bem sei, mas espero começar a colher louros daqui a cinco anos para ter um nível de vida simpático. Recomendação pessoal: não esperem investir e imediatamente começar a ganhar dinheiro, isso não acontece.

Outra pergunta (normal) que me fazem é a minha opinião sobre o mercado português. Honestamente, Portugal é um mercado mauzote, com muito baixo poder de compra e recentemente toda a gente decidiu criar uma marca de sapatos. Mais tarde fui na leva em que toda a gente decidiu criar uma marca de bikinis (mas o meu produto era diferente da maioria, valia a pena arriscar).

Nos negócios a concorrência pode ser grande, ter uma loja tem um custo enorme, os recursos humanos são geralmente de fugir (trabalha-se muito mal em Portugal, as experiências que já tive com funcionários!) e no caso dos sapatos as sapatarias estão a fechar. O meu modelo de negócio não tem venda a retalho, quando tentei quiseram logo passar-me a perna, levar a mercadoria e não pagar. Em Portugal vive-se bem de consciência com dívidas, as pessoas não se importam de dever ou de ver outros negócios arruinados por falta de pagamento. Para ajudar, os tribunais não andam, estas coisas prescrevem ou ficam em águas de bacalhau porque os desertores não têm bens em seu nome. São modos de vida, há pessoas que vivem mesmo assim, a encomendar sabendo que não vão pagar.

Além disso, a média de lucro na venda para retalho é muito baixa. É preciso vender imenso, ter muitos clientes para fazer dinheiro. Sapatos ou outro tipo de produto, já pensaram no quanto é preciso ter à partida para pagar ao fabricante (logo à saída da mercadoria) sem saber quando o cliente retalhista vai pagar ou se vai pagar? Sabiam que a maioria das lojas quer pagar a três ou a seis meses e sabe-se lá se acaba por pagar? Tomando a opção pagamento contra entrega, se o retalhista desistir da encomenda porque não tem como pagar a pronto, se ficarem com a mercadoria em armazém, o que fazem ao produto e ao investimento parado, sendo que as colecções têm três a seis meses de presença?

Ainda no caso dos sapatos, pensaram na concorrência? Os chineses e até espanhóis, são muito mais baratos que o Made in Portugal. A maioria das lojas não quer qualidade, querem assim-assim e sobretudo querem ver preço, um preço que as pessoas possam pagar. Mais depressa querem preço do que qualidade ou design. A maioria dos portugueses não tem poder de compra, são poucos os que investem em coisas boas. São mais os que dão 50€ por uns botins que ficam feios ao fim de uma estação do que os que dão 150€ por uns botins que duram quatro ou cinco anos. Além disso, os portugueses são pouco patriotas, estão-se nas tintas para o que é nacional. Um inquérito que fiz sobre fatos de banho, com respostas surpreendentes, mais de 80% revelou não ter qualquer importância escolher produtos portugueses.

Não gosto de retirar sonhos a ninguém, mas a maioria das pessoas que me escreve dizendo "quero criar uma marca de sapatos", ao longo das mensagens  torna-se evidente que não têm perfil para o fazer. Talvez alguns precisem apenas de mais experiência profissional a trabalhar para outros e menos ansiedade para dar o salto, ganhar experiência. O que não é vergonha nenhuma, uns nascem com mais perfil para umas coisas do que para outras. Eu por exemplo não comecei isto cedo.



Não me comparando ao Mark Zuckerberg, é isto, sem tirar nem pôr. Ter um negócio próprio (no meu caso vários) é um trabalho constante, não há horas livres. Eu estou sempre a trabalhar, sempre com um telefone na mão (vou agora ter dois iPhones ao mesmo tempo, percebi que preciso), eu estou sempre a olhar para os pés das pessoas, eu falo imenso sobre trabalho, eu não faço uma viagem sem explorar o que se faz por esse destino nas minhas áreas de negócio (embora não me custe, esse tempo não é de férias), eu vou a um casamento, vejo um vestido e imagino umas costas para um fato de banho, eu vejo um filme, uma revista, tenho um sonho e surge uma ideia. É um trabalho absolutamente constante, diário e nocturno, 365 dias por ano, o que para algumas pessoas pode ser desgastante, ser confuso ou mesmo dar problemas quando pensamos neste tipo de comportamento junto de uma família/marido/namorado que não leva o mesmo ritmo de trabalho ou não consegue compreender/acompanhar.

Como diz o Mark, "that's basically my whole life". Mas isto também traz problemas: ter tanto em que pensar e, no meu caso, vários negócios, às tantas o tempo não estica para tudo e há coisas que se perdem pelo caminho ou que não são como gostaríamos, como por exemplo eu estar há mais de um ano para mudar o site da ROS LISBON que eu sinto que já não representa a minha marca e as minhas necessidades (mas a mudança está para breve!). Ou o tempo que levei para ter um escritório organizado como deve ser, que me facilite o trabalho e a cabeça, o que vai acontecer agora à lei da força porque vou ter um bebé. Ou o não ter arranjado a tempo uma alternativa para um fabricante de sabrinas e ter ficado sem colecção de inverno. Há muita coisa má e frustrante na criação de um negócio, mas disso pouco se fala.

Seja o que for que escolherem na vida, boa sorte!

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© A Maçã de Eva

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